Horizonte e compromisso editorial da revista
Aportar com a difusão a construção de conhecimento em infância e juventude: Para a consolidação de um campo transdisciplinar, contextual e comprometido ética e politicamente com a mudança social.
A construção de conhecimento nos campos da infância e juventude enfrenta a grandes desafios: Desde que marcos teóricos, epistemológicos e metodológicos podemos pensar hoje infância e juventude, que expressam uma pluralidade inesgotável de formas de ser e existir? Que procedimentos acadêmicos ou extra acadêmicos favorecem a compreensão do mundo infantil e juvenil nos quais coabitam estruturas residuais de participação, educação e socialização com práticas emergentes de ação política, de interação, de relação com as tecnologias, de novos hábitos de consumo, de maneiras criativas de subjetivação e comunicação? Como abordar as condições de vida de meninos, meninas e jovens que em contextos como os de América Latina estão cobertas por diversos processos de exclusão social, de precariedade econômica e vital, de desigualdades, injustiças, opressões e violências com profundas raízes históricas e consideráveis níveis de naturalidade? Como transcender a mera produção teórica e a necessária compreensão das realidades de construir novos mundos e possibilidades para uma vida decente não para crianças e jovens, mas de mãos dadas com eles e elas, a partir de suas perspectivas, sentidos, vozes e formas expressão?
Requeresse avançar como tem sido feito, a abordagens críticas e transdisciplinares que permitam apreender e intervir nas complexidades do mundo social e nas realidades concretas da infância e juventude. Desde sempre, sabemos que a própria constituição de crianças e jovens como "objetos de conhecimento" foi desenvolvida através de contribuições significativas de diferentes disciplinas e modos de reflexão. A noção de infância, por exemplo, como explicou Sandra Carli (2011), é definida a partir das contribuições mais variadas da psicanálise, sociologia, direito, serviço social, estudos literários, estudos de comunicação e cultura, antropologia, história, entre outros. Além disso, têm sido aportados todos os tipos de imaginário e representações que às vezes circulam de forma contraditória: "menores de idade" que necessitam de proteção, objetos de intervenção e cuidado, detentores de direitos, para citar alguns dos lugares simbólicos nos quais se destina localizá-los.No entanto, embora haja muitas abordagens, bem como temas e problemáticas, as tendências na investigação social e cultural relativas a infância apontam para lugares cada vez menos homogeneizadores, abstratos e disciplinares, e cada vez mais pluralista, contextual e relacional.
As múltiplas formas de ser criança e as complexidades das experiências da infância têm levado a formas mais flexíveis e abertas de investigação, tanto em termos teóricos como metodológicos, que transitam pelos interstícios das disciplinas e resistem a abordagens reducionistas ou centradas na percepção de meninos e meninas como cidadãos de segunda categoria ou como sujeitos sem ação. As implantações no campo de estudo da infância foram questionando o suposto caráter universal e a-histórico da mesma, reduzindo as crianças a depositários de tradição ou do ensino de adultos, e leituras unicamente biologicistas ou centralizadas em suas vulnerabilidades e deficiências. Em vez disso, a partir de abordagens colocadas ou locais (sem dizer assim particularista) se têm pensado as infâncias como construções socioculturais imersas em estruturas materiais de e entrelaçados de significados que limitam as possibilidades de certos movimentos, determinam trajetórias de vida, práticas sedimentadas; mas ao mesmo tempo permitem que outros movimentos não esgotem as ações, nem se encontrem além das vicissitudes da história.
O mesmo aconteceu no campo de estudos da juventude. Cabe recordar que a juventude, como um conceito ou categoria social, foi abordada desde diferentes correntes teóricas e tem sido associada com características diferentes que se consideram, definidas com o enfoque, o que significa ser jovem em um momento histórico e em uma dada sociedade. No desenvolvimento prolífico de estudos para jovens entraram em disputa diferentes conhecimentos que falaram do significado de " ser jovem " a partir de apostas e perspectivas variadas tanto como biológica, como pedagógica, antropológica, sociológica, crítico, político, entre outros. Neste sentido, os indivíduos considerados jovens foram interrogados nas universidades, mas também desde outras áreas da sociedade (instituições, indústrias culturais, meios de comunicação, etc.), por discursos que formam várias imagens e imaginários múltiplos e que obedecem a diferentes intencionalidades. Assim, se falou dos jovens como sujeitos imersos em um período de transição, ou em busca de identidade, sujeitos que representam o motor da mudança social, sujeitos vulneráveis e propensos ao risco, ou sujeitos naturalmente perigosos e desajustados, para citar apenas algumas das noções da juventude identificadas em várias pesquisas e estados da arte (Arango, Escobar & Quintero, 2008, Pérez-Islas, 2008, Muñoz, 2010, Gómez-Esteban, 2011).
Alguns dos discursos mais importantes em termos do que tem sido contribuído para instituir um modo particular de pensar/construir juventude, foram os seguintes: 1) O discurso psico-biológico ou evolutivo que desde uma perspectiva de idade considera a juventude como uma etapa de um desenvolvimento humano linear, unívoco, contínuo, progressivo e cumulativo, que é caracterizada por certos traços psicobiológicos e sociais predeterminados e associado com transição e incompletude. 2) O discurso das políticas sociais que transita de representações de jovens como "o futuro da sociedade", atores estratégicos de desenvolvimento e sujeitos de direitos, a visões negativas que os associam com indivíduos em situação de risco, de dependência, falta de autonomia e até mesmo potenciais criminosos (Gómez- Esteban, 2011). 3) O discurso pedagógico que se refere a juventude como uma fase da vida para formar, para explorar, para passar um período de tempo (moratória social), exclusivamente ao estudo, adiando responsabilidades económicas e exigências "associadas com um ingresso pleno a maturidade social: formar um lar, trabalhar, ter filhos" (Margulis & Urresti, 1998, p. 4). 4) O discurso das ciências sociais que reúne várias vertentes: culturalismo estadunidense, teoria das gerações, abordagem funcionalista, perspectiva da complexidade e construtivismo, entre muitos outros. 5) O discurso dos Estudos culturais, cuja origem é geralmente associada com a Escola de Birmingham (sem ser reduzido a esta), e as investigações relacionadas com as subculturas juvenis como formas de resistência simbólica dos grupos dominados frente aos dominantes (Pérez-Canary, 2008).
Neste contexto, e tendo em conta a advertência feita por Reguillo (2003) sobre não cair no erro de pensar a juventude como uma continuidade temporal, homogênea, a-histórica ou essencial; a investigação social e cultural no campo da juventude também transitou a lugares que problematizam as concepções mais tradicionais e apostam em discursos construtivistas, críticos ou complexo onde a condição juvenil não é um "simples estágio em uma sequência linear biológica-biográfica , mas uma construção sociocultural historicamente definida" (Rossi, 2006, p. 13 ). Como observa Valenzuela (2005) "a juventude é um conceito vazio fora do seu conteúdo histórico e sociocultural" (p. 19), por isso, varia de acordo com o momento histórico, segundo certos marcadores de identidade (classe social, local de origem, etnia, sexo, orientação sexual, etc.), segundo sua relação com o que é definido como "não juvenil" e incluso com elementos como a expectativa de vida, que é mediada por contextos socioeconômicos. Nesse sentido, aqueles indivíduos de carne e osso e suas identidades juvenis, estão mais relacionados com construções sócio-históricas, polissêmicas, relacionais, mutáveis e transitórias que com totalidades essenciais, cristalizado ou definidas por fatores puramente físico-biológicas.
Com esta base, pode-se afirmar que a produção de conhecimento nas áreas de infância e juventude tem enfrentado pelo menos três grandes mudanças que é importante demonstrá-las e promovê-las. Em primeiro lugar, se transitou de uma produção centrada nas disciplinas a perspectivas inter e transdisciplinares. De fato, dadas as complexidades e pluralidades de experiências de infância e juventude, a produção de conhecimento tem defendido cada vez mais leituras que se apoiam em amplos campos teóricos e plurais estratégias metodológicas, ao invés de restringir-se a uma única disciplina ou privilegiar o paradigma da monocultura e fragmentação. Isso não significa que se está desestimando o conhecimento derivado de campos disciplinares como a psicologia, a sociologia, a antropologia ou a história, nem que se considere a transdisciplinariedade como necessariamente mais abrangente completa ou “superior”.
Pelo contrário, é uma forma diferente de abordar as questões e problemas relacionados com as experiências da vida infantil e juvenil que atende a chamada já clássico, mas ainda pendente de "abrir as ciências sociais" (Comissão Gulbenkian, 1996). A configuração histórica de áreas da vida social (economia, sociedade, cultura, política) e as dimensões temporais (passado/presente), juntamente com a divisão do trabalho no âmbito das ciências sociais que se atribui a uma disciplina (economia, sociologia, antropologia, ciência política, história) cada uma dessas áreas consideradas como distintas ontologicamente das outras, entra em tensão quando confrontadas com questões relacionadas a infância e juventude, que exigem leituras nas quais se "atravessam fronteiras" e transcendem a sensação de segurança que oferecem as disciplinas resulta sendo fundamental. Mais além dos "monopólios de sabedoria " ou das zonas separadas e "reservadas para as pessoas com determinado diploma universitário" (Comissão Gulbenkian, 1996), estão as práticas, os sentidos, as desigualdades, as restrições e ações de meninos, meninas e jovens que nos convidam a promover olhares que não segmentem a realidade para estudá-la e que não assumam de início que há um enfoque privilegiado para sua compreensão (psicológico, econômico, sócio-histórica, cultural, etc.).
Cabe precisar que a transdisciplinaridade como uma característica dos campos do conhecimento em infância e juventude não é um ponto de partida com base na soma de disciplinas ou a negação destes. Trata-se de uma tendência e de um horizonte possível no trabalho com meninos, meninas e jovens no qual os diálogos e interações entre várias tradições teóricas tanto disciplinares como transdisciplinares (estudos de comunicação, estudos culturais, estudos de gênero, etc.) certamente são frutíferos. A organização do conhecimento em torno de determinados objetos de estudo ou saberes especializados é subvertida quando nos aprofundamos em formas de vida de crianças e jovens e vemos que o artístico, o educativo, o comunicativo, o cultural, político, económico e histórico se sobrepõem em corporalidades e subjetividades que escapam aos reducionismos explicativos e nos levam a articular criativamente teorias, metodologias e técnicas que se movem por distintos campos do saber e fazer.
O segundo campo de deslocamento dos campos de conhecimento da infância e juventude está se movendo de universalista e homogeneizador a enfoques situados e contextuais. De fato, outra das tendências em tais campos é a que avança para as perspectivas nas quais se adquirem maior centralidade as mediações da história, as tramas relacionais constitutivas de determinadas problemáticas e as especificidades dos contextos. Não é o mesmo ser uma criança ou jovem no Norte ou no Sul global, em contextos marginais ou precários do que naqueles com altos níveis de consumo e capacidade aquisitiva, em áreas rurais e urbanas, em ambientes representados como indígenas, afrodescendentes ou mestiços. De acordo com o momento histórico e aos contextos concretos são preenchidos com vários conteúdos e noções às vezes contraditórios as noções de menino, menina e jovem, de maneira que estas podem significar ao mesmo tempo, mudança, reconhecimento, desesperos, precariedade, violências, criatividade, subjugações, sonhos, resistências, estética, política, transgressão, exploração, indignação, a insatisfação, entre muitos outros.
Neste sentido, a configuração da infância e juventude como objetos de conhecimento implicam na produção de alguns indivíduos categorizados como meninos, meninas e jovens mediante dispositivos de classificação biológica, psicológica, demográfica e política. Se trata de um duplo processo em que as crianças e os jovens são discursivamente construídas, e social e historicamente aos sujeitos referidos em discursos e categorias de pensamento (Castellanos, 2011). Sem dúvida, enquanto a produção de conhecimento nas áreas de crianças e jovens tem contribuído não só para entender, mas para produzir indivíduos nomeados como crianças e jovens, o seu crescente carácter definido e contextualizado permitiu superar as noções genéricas e universais de "criança ou jovem ", para incorporar as dimensões de disputa e negociação que em contextos sócio-históricos determinados atuam entre aqueles imaginários dominantes que definem em um momento dado os grupos e sujeitos “em “condição infantil ou juvenil”, e as próprias representações e vivencias dos agentes mediados por processos de auto reconhecimento e identificações desiguais e diferenciais.
Neste marco é importante ressaltar que a infância e juventude não está associada apenas à idade ou as características dadas e essenciais, motivo pelo qual é importante pensá-las a partir desde uma perspectiva relacional, que incorpore a identificação contextual de processos dos quais fazem parte. A condição infantil ou juvenil é histórica, localizada e diversificada e está dotada de representações, atitudes, potencialidades, disposições, aspirações e sobretudo relacionamentos (de significados, de poder, de estruturação) sob o qual características específicas e rastreáveis espaço e temporalmente para as crianças e jovens adquirem sentido. Como afirma Castellanos (2011) ao referir-se à condição juvenil, esta pode ser pensada como "a interseção entre rotas e posições, como vetores de forças que orientam e localizam ao indivíduo em um universo de oposições que ordenam o mundo social e os submundos por meio de subcampos, nos quais o indivíduo atua, é e deriva suas qualidades sociais "(p. 175).
Se é criança ou jovem em relação a alguém e em certas circunstâncias e contextos, de modo que, por exemplo, na família "são jovens de todo o sector social -com ou sem moratória social- por ocupar esse lugar na interação intra-institucional, caracterizada pela coexistência com as outras gerações“ (Margulis & Urresti, 1998, p. 8). Igualmente, não é possível definir os traços da infância e juventude, sem considerar a sua relação com as representações que definem "o que não é infantil ou juvenil ", ou em outras palavras, sem analisar ao mesmo tempo a sua relação com outras condições, como adulto, ou outros produtores de diversidade social e cultural, tais como gênero, etnia ou classe social.
Por último, o terceiro campo de deslocamentos de conhecimento em infância e juventude que também queremos promover ademais daqueles baseados em seu caráter transdisciplinar e contextual, tem a ver com a passagem de uma investigação despolitizada a uma comprometida ética e politicamente com a mudança social. A Investigação nos campos da infância e juventude não podem ficar na constatação de problemáticas e eventos. Tampouco na explicação de realidades dadas e "objetivas". Pelo contrário, esta pode orientar a tomada de decisões ou ações de intervenção, acompanhamento ou mobilização para melhores condições de vida para crianças e jovens, bem como, gerar propostas e reflexões que vão além da simples compreensão do mundo e promover a construção de diferentes realidades e sociedades mais inclusivas.
Isso significa romper com a distinção entre o trabalho teórico e prática política bem como imaginar outras formas de objetividade que não se reduzem à neutralidade de valores e a separação nítida entre sujeitos e objetos de conhecimento. A infância e juventude majoritariamente permanecem sujeitas a subordinação, a violência, as desigualdades e injustiças, motivo pelo qual a produção de conhecimento em infância e juventude incorporando a vozes, conhecimentos e motivações das crianças e jovens, pode contribuir muito para promover mudança e questionamentos dos espaços educativos, meios de comunicação, espaços institucionais e não- institucionais que continuam a reproduzir os privilégios de alguns e a invisibilidade e subjugação dos outros. O campo de estudo, práticas e conhecimento em infância e juventude não é um fim em si mesmo, senão um meio para intervir e democratizar as realidades das crianças e jovens imersos em complexos dispositivos de opressão.
Referencias
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